terça-feira, 15 de julho de 2014

Boa Morte - Eira do Mourão - Espigão - Ribeira do Pico - Ribeiro do Poço- Ribeira da Achada (Central Hidroeléctrica) -26/06/2014

Há muito tempo que desejava fazer esta secção desta levada, deste trilho. Diz-se mesmo por aqui que "caminheiro que se preze como tal, tem de conhecer a levada do Norte  - no troço compreendido entre a Boa Morte e a Serra de Água (Central Hidroeléctrica)".
Por variadas razões, durante todos estes anos, nunca se proporcionou tal oportunidade. Promessas, adiamentos, constrangimentos, fizeram com que deixasse a oportunidade de fazer esta caminhada até o dia de hoje. E que dia o escolhido, que bela escolha viria a revelar-se!
Na companhia de uma fiel amiga, decidimos que o tempo certo para esta aventura fabulosa, seria hoje!
O dia amanheceu escuro pelo Funchal, o que fazia prever um dia não muito bom para passeios com vistas de primeira qualidade. Foi com essa sensação de alguma desilusão que partimos em direcção à Ribeira Brava.
O tempo mantinha-se negro, os ânimos fraquejavam. Saímos de casa já muito tarde e fazíamos  por demorar ainda mais como se de um milagre estivéssemos à espera. Tomámos um café e seguimos o nosso caminho finalmente sem pensar no tempo. Seria o que fosse. Era certo que lá estaríamos.
Sendo assim, dirigi-mo-nos à Boa Morte na Ribeira Brava onde finalmente iniciaríamos o percurso escolhido para hoje acima do bar "O Pinheiro": a levada do Norte no sentido Boa Morte - Eira do Mourão - Espigão - Ribeira do Pico - Ribeiro do Poço- Ribeira da Achada (Central Hidroeléctrica). Eram 12h20m quando começamos.
O tempo, esse ameaçava agora a sério. Caíam mesmo alguns pingos. Verificamos as protecções e lá seguimos de encontro à Eira do Mourão, a nossa primeira etapa.
A levada, outrora povoada por belos pinheiros hoje encontra-se desoladora. Parece que aquela zona foi bombardeada pelo napalm. Ao invés do pinheiros, agora avistam-se unicamente as infestantes e o malfadado eucalipto. Dos pinheiros, restam unicamente as suas carcaças carcomidas pelo fogo e pelo nematodo do pinheiro. Dolorosa a comparação que faço da actualidade com a imagem gravada na minha memória desta zona completamente diferente.
A juntar a este cenário devastador depara-mo-nos  com um pequeno incêndio junto à esplanada da levada. Pergunta-mo-nos que almas o terão iniciado neste sítio, com este tempo e com que intenção. Ali, não havia já nada para arder. 
O início assim do nosso passeio, não era assim, nada prometedor. Mas continuamos. Olhávamos lá ao fundo e por detrás da Eira do Mourão havia uma claridade desafiante, que nos empurrava em frente. E assim foi.
Vinte minutos depois do começo a panorâmica já era diferente. As vistas sobre a Eira do Mourão com o sítio da Furna logo por detrás, embora separado pelo imenso vale onde se encaixa o sítio da Meia-Légua, mesmo junto a Ribeira Brava, empolgava-nos cada vez mais!

Antes de passarmos pela aldeia semi-abandonada, passamos por uma pequena ponte sobre a Ribeira Funda. Impressionante a profunda garganta fazendo lembrar um pouco a que conhecemos a caminho do caldeirão do Inferno. Aqui podemos usufruir de um pequeno núcleo de lauraceas, a fazer lembrar que por ali outrora, também a Floresta Laurissílva foi rainha!
Depois foi tempo de apreciar as nogueiras já com os seus frutos completamente formados! A estas juntaram-se os pereiros, as ameixieiras! Ficam as promessas de voltar aqui daqui por uns tempos, o suficiente para que estes frutos ganhem a textura e sabor para serem provados ali! Ao sabor da corrente da levada!


Eram 13h18m quando alcançamos a Eira do Mourão, onde à nossa esquerda avistamos a antiga escola transformada em centro de lazer a que "só alguns têm acesso".
É impressionante pensar que o isolamento deste sítio só foi quebrado pela estrada íngreme que atravessa a levada do Norte, por onde caminhamos, no ano de 2003! É possível avistar mesmo a escadaria sem fim, de encontro à Fajã da Ribeira com as casas abandonadas pelos seus donos e posteriormente queimadas pelos energúmenos que continuam à solta nesta terra.

Uma breve conversa com uns "estrangeiros" da terra de "sua majestade" - imagine-se um grupo de gente com mais de 60 anos que queria partir, levada dentro, munidos apenas de sapatilhas - serviu para os desencorajar de tal investida. Primeiro, porque não sabíamos o estado da levada, depois porque pelo que pudemos observar nenhum deles à partida,  aparentemente, estaria em condições de percorre-la. Todos tinham vertigens, imagine-se! Volto aqui à minha insistente ideia de que as unidades onde se encontram hospedados os nossos turistas são os primeiros responsáveis pela chamada de atenção para estes pormenores à sua chegada. Ninguém pode ser cem por cento responsável pelos outros. É preciso não esquecer que falamos de pessoas adultas que muitas vezes tomam um aviso como uma ofensa às suas capacidades. Mas, ainda assim, prefiro isso a ter de lidar depois com dissabores que podem sempre acontecer. Acabei por lhes indicar a descida pela Eira do Mourão até à Ribeira Brava. Foi o que fizeram.
Posto isto, era tempo de nós próprios vermos como estaria então, o resto da levada até à Central Hidroeléctrica!
As 13h32 atingimos a velha casinha dos levadeiros que teve a infeliz sorte de ser completamente destruída pelo fogo logo depois de ter sido reconstruída   e pintada! Foi aí mesmo que demos o nosso primeiro assalto ao farnel! E que paisagem para nos acompanhar! Que silêncio! Apenas o som da água a correr alegremente pelo canal da levada!


Seguimos em frente! Os primeiros troços expostos aparecem, mas as vistas soberbas sobre o sítio do Espigão compensam sobremaneira! Consegue-se mesmo delinear a velha vereda do Espigão, outrora única ligação deste sítio à civilização. Impressionante a zona onde ela passa, na crista de rocha de encontro ao sítio da Meia Légua!
A levada nesta altura do ano encontra-se enfeitada pelas Rosas da Rocha ou Alfinetes - Centranthus ruber (L.) DC muito comuns nesta zona. São um mimo! Na esplanada da levada ou nas rochas, lá estão elas com as suas cores rosa ou brancas!


Neste autêntico festival de cor, continuamos onde ás 14h08 damos de caras com um pequeníssimo túnel que tem por cima umas "furnas" escavadas na rocha, talvez para protecção dos trabalhadores, na altura da construção da levada.
Cinco minutos depois, damos com umas escadas à direita que não sabemos onde vão desembocar, mas pensamos que pela zona onde estão, darão acesso ao sítio do Espigão. A descobrir numa próxima investida dado que, a única subida que conheço realmente, fica depois do túnel de 500 metros que atravessa todo o sítio do Espigão da Ribeira Brava.
Antes de atravessar o túnel do Espigão, mesmo à esquerda da sua entrada, chamo a atenção para uma pequena vereda que nos leva à principal vereda do Espigão que corre paralela à Ribeira do Espigão. Lembro-me de a ter percorrido, há uns anos atrás, na companhia e uns amigos depois de uma descida vertiginosa desde o sítio do Espigão até esta secção da levada do Norte. É essa descida que encontramos mesmo à saída do túnel, que demora cerca de dez minutos a atravessar. Há que contar com lama e muita.

Depois de sairmos do túnel é hora de passar a levada por cima de uns tubos! Os primeiros da nossa conta!
Uma tristeza ver que a levada foi preterida aos tão incaracterísticos  tubos de plástico cinza escuro nas zonas onde cedeu por variadas razões!
Ás 14h47 passamos por um bonito vale onde a levada passa pelo centro de uma crista de rocha! O vale fechado é digno de uma paragem!

E a levada continua, ainda com resquícios das Coroas de Henrique - Agapanthus outrora plantadas e que estão em flor por esta altura. Mesmo não sendo um "amante" desta planta nas levadas, tenho de reconhecer que por esta altura, onde o abandono quase total do canal é uma verdade incontornável, estas mesmas plantas acabam por lhe dar alguma dignidade e beleza. Lembra-nos o quanto já foram cuidadas.
E é isso mesmo que encontramos em certos troços onde ela mantém a estrutura original. Que beleza arrebatadora! Paramos muitas vezes, para olhar para trás, para baixo e em frente! As nuvens brancas completam o quadro magnífico, só possível nesta terra abençoada onde a destreza, coragem e heroicidade conseguiram cavar estes "caminhos de água" em lugares impensáveis.
Imaginamos este percurso há vinte anos atrás, imaculado, cuidado pela importância crucial que tinha na altura e ainda o tem.
Esta parte da levada do norte deveria ser de facto tratada pela real importância que possui. Um percurso de água e dos homens que deveria ser preservado com todos os cuidados merecidos.
Aqui e ali os seixeiros "salix canariensis" de um lado e as urzes de outro dão-nos aquela sensação de segurança que nos falta por momentos. É um percurso arrebatador. E depois...mais tubos! Impressionante que a zona onde estes substituem a levada, o sítio fica todo "infestado" pelo silvado e outras pragas. E como se a própria Natureza nos dissesse que aqueles tubos "não pertencem" ali.

Pelas 15h07, atingimos a secção que, a meu ver, é a mais vertiginosa de todo esta troço. Aqui de facto um ligeiro descuido pode ser fatal, não havendo tempo de remissão! Aqui o aconselhado para quem sofre de vertigens é mesmo "voltar para trás" e dar-se por satisfeito por ter chegado até ali.
Por ali a levada corre no trilho esculpido na rocha. Apenas a levada e a esplanada que não possui mais de trinta centímetros. Depois dela, os abismos que caiem a pique em zonas com cerca de cem metros de altura!

As vistas sobre o vale da Serra de Água são soberbas! Ao fundo, aos nossos pés, fica o famoso estabelecimento "Taberna da Poncha" no sítio da Laje, mais acima, os sítios do Pinheiro, Eirinha, Barreirinhos, Terra Grande, todos eles sítios da Serra de Água. Nós, lá continuamos em frente!
Pelas 15h20, passamos por uma zona de castanheiros, numa parte da levada em que mais uma vez ela encontra-se muito degradada! Infelizmente é quase uma constante. Por aqui vêm-se as consequências do temporal de 20 de Fevereiro de 2010. O vale continua exposto pela força das águas que ali correram naquele fatídico dia, vindas das encostas do Pico da Cruz.
 


Mais um pequeno túnel e damos de caras com uma zona onde a levada corre protegida pela encosta. O tempo, esse, fez-nos a vontade. Estava agora simplesmente radioso!
Eram 15h50 quando pela nossa frente surge o levadeiro que faz aquele troço duas vezes por semana. Dez minutos de conversa amena e bem disposta deu para perceber que "a levada" tinha sido toda a vida deste homem! Depois de nos contar algumas peripécias de anos passados com muitas dificuldades mas sempre com o espírito de "missão" vimos este homem solitário seguir o seu caminho até ao sítio de onde vínhamos, a Boa Morte!
Logo depois a levada corre num tubo, suspensa por uma estrutura de ferro, mas não se assustem! Pela esquerda pode fazer essa travessia em segurança, a não ser que, em caso de maior destreza física, queira fazer uma foto ou video para impressionar os amigos lá em casa!
Agora já se avista a Pousada dos Vinháticos mesmo por detrás do Pico da Multa. Por detrás da Pousada, avista-se ainda o Pico da Viúva e o Pico Redondo!
Pelas 16h20 passamos por uma das zonas mais bonitas da levada, na minha opinião! Na encosta do Pico Frade, cravada na rocha lá corre a levada agora protegida por uns varandins de urze. O varadim está danificado em muitas secções nos dias de hoje mas a verdade é que dá sempre aquela "sensação" de segurança, ao mesmo tempo que aumenta significativamente a sua beleza! À nossa esquerda ergue-se o Pico do Meio Vintém com os seus 622 metros de altura e por onde passa a levada, já depois da Ribeira do Pico, que atingimos eram 16h31m.



 Paramos um pouco ainda antes de continuarmos. Depois de mais uma investida ao farnel lá passamos a zona de distribuição de águas e continuamos em frente.
A partir daqui a levada está seca. A água que outrora por aqui corria, chega a caixa divisória da Ribeira do Pico por um túnel subterrâneo. Consta que esse será o mesmo destino para a secção que acabamos de atravessar. Adivinha-se assim, a "morte" da levada do Norte no que respeita ao troço Ameixieira ( Ribeira do Pico) e a Boa Morte.
Seguindo em frente, surge o primeiro obstáculo, uma derrocada recente. Depois de ultrapassada, pelas 16h55, encontramos um pequeno túnel onde nem precisamos de lanterna para atravessa-lo. Está seco e em bom estado, estranhamente.
Depois deste passamos ao lado do Pico do Búzio com os seus 798 metros.
Logo depois, outra derrocada que obstrui toda a passagem. E preciso alguma perícia para ultrapassar este monte de pedras altamente instável. Qualquer movimento extra e o monte de pedras pode desmoronar-se ribeiro abaixo!
Logo depois, é tempo de ultrapassar o túnel grande que atravessa o Pico da Pocinha que tem 879 metros de altura. É difícil encontrar a entrada porque esta encontra-se coberta de vegetação. Com algum esforço lá encontramos a mesma. São vinte minutos de alguma perícia para não sairmos de lá irreconhecíveis.  O túnel encontra-se alagado e com muita lama, valendo unicamente o muro de separação da levada da esplanada que se mantém fora de água... e lama! É por ele que devemos caminhar os seus 1100 metros! Se nos conseguir-mos equilibrar! As costas já reclamavam por esta altura!
À saída do túnel, a levada que outrora passou sobre o Ribeiro do Poço, desaparece. Resta apenas a ponte onde a mesma corria sobre o corgo.
É necessário, subir umas escadas do lado esquerdo à saída do túnel e tomar o trilho que passa mesmo por cima da sua entrada, em direcção ao ribeiro. Aí, onde as águas convergem para a passagem subterrânea, devemos subir por uma escada metálica e seguir o trilho que volta a descer em direcção ao antigo percurso da levada.



Aí mesmo, temos talvez o maior desafio de todo o percurso de hoje. A encosta altamente insegura deixa a zona quase inultrapassável. É mesmo muito perigoso seguir em frente. Foi-me posteriormente confirmado que esta era de facto, a zona mais instável da levada pelo tipo de solo que a envolvia. Cinzas e escórias vulcânicas que aliadas à pouca vegetação tornaram a zona num autêntico "quebra-cabeças" para os responsáveis do canal. Fiquei a saber,  por exemplo, que a reparação de uma das últimas derrocadas quando a levada ainda por ali passava, demorou cerca de dois meses!
Aqui é imperativo que regresse pelo mesmo caminho desolador que o trouxe até aqui desde a Ribeira do Pico.
Depois dessa zona de muita instabilidade, a levada desaparece mesmo da nossa vista por alguns metros.




Seguimos por mais vinte minutos onde ainda atravessamos dois pequenos túneis em bom estado de conservação. Avista-se em frente por momentos, o Pico do Galo e à esquerda a Via Rápida em direcção ao grande túnel rodoviário que encurtou as distancias para quem vai e vem de São Vicente!
Finalmente damos de caras com a Central Hidroeléctrica da Serra de Água na margem esquerda da Ribeira da Achada, antiga Central Salazar - em homenagem na altura da sua inauguração em 1953, ao antigo ditador que governou Portugal durante mais de quarenta anos!




Foi uma caminhada soberba, não aconselhável a pessoas com vertigens ou pouca firmeza de pés. No entanto fica aqui este registo, se calhar para memória futura dado que tememos pela sua continuidade ou manutenção. Se preciso fosse, bastaria olhar para esta última parte da levada que já não transporta aquilo para que foi criada - água. Como outros tantos trilhos abandonados pela nossa terra, não entendemos mais este que pouco a pouco caminha para o esquecimento e abandono total.
Mais uma vez não entendemos a razão. Pelo grau de perigosidade? Pela dificuldade na manutenção? Alguém eventualmente perguntar-se-à que foram estas mesmas levadas que deram nome à Madeira por esse mundo fora no que respeita a trilhos fora do comum? Lembro mesmo aqui a saudosa levada do Curral e Castelejo que chegou a ser "cabeça de cartaz" nos primeiros guias da especialidade e hoje encontra-se praticamente intransitável, pelo menos de forma consciente.


Como disse anteriormente, aqui fica o testemunho de um percurso fantástico, com grande história e tradição, não recomendável nos dias de hoje, pelas razões atrás apresentadas.
São 13,5 Km desde a Boa Morte até à Central Hidroeléctrica da Serra de Água, sendo 3,5 Km desde a Boa Morte à Eira do Mourão e os restantes 10 km até à Central.

Nós já sabem, continuaremos apesar de tudo, aqui no nosso canto. Contando emoções enquanto elas existirem, enquanto houver prazer de caminhar por esta linda terra!



3 comentários:

  1. Parabéns pela vossa coragem e também pela beleza que partilham connosco.
    De quando em vez acontecem aí acidentes de pessoas que não conheciam os perigos.
    Nessas aventuras todos os cuidados são poucos.

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    1. O perigo espreita onde está o homem amigo Luís. Concordo consigo quando diz que há pessoas que não conhecem os perigos. Para esses há de facto um trabalho permanente a ser feito de prevenção. Para os outros, que conhecem o perigo e mesmo assim arriscam com as devidas precauções, há que louvar o espírito. Não fosse esse mesmo espírito nos nossos antepassados e não teríamos hoje a maior parte dos nossos trilhos que tão bem serpenteiam cada lugar. Cada sítio inigualável. Um abraço e obrigado pelo comentário. Volte sempre!

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  2. Que saudades. Apenas fiz esta levada uma vez, há muitos anos atrás. Lembro-me das paisagens soberbas que proporciona. Pena é que esteja assim tão abandonada. Esta na altura de visitá-la novamente, até porque parece que tem os dias contados. No entanto, e como ficou bem claro na descrição, só deverá fazê-la quem é de pé muito seguro (de preferência os dois!) e cabeça fria, sem vertigens. Fala a voz da experiência. Ou então fazer apenas parte do percurso e depois dar meia volta e regressar. [John]

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