quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Stª Quitéria - Levada do Curral e Castelejo - Curral das Freiras - 30-12-2015

Hoje, venho aqui relatar-vos uma das últimas aventuras feitas por este "torrão abençoado" a meio do Atlântico. 
Vou falar-vos da última caminhada de 2015, aquela caminhada que ano após ano, serve para deixar um "até já" breve, no que respeita a caminhadas, pelas veredas e levadas da Madeira.
A escolha seria feita em conjunto com uma amiga destas andanças. Iríamos assim fazer a Levada do Curral e Castelejo.


Eu faria o percurso pela primeira vez no sentido Santa Quitéria - Curral das Freiras ao longo deste fabuloso canal.
Esta levada, já a tinha percorrido no sentido Curral das Freiras - Santa Quitéria, algumas vezes. Uma das quais, já aqui relatada neste Blog em 2009. No entanto, a última vez que a percorri em 2012, estava em tão péssimo estado, ainda com consequências da aluvião de 2010, que jurei a mim mesmo, nos mesmos termos em que o padre Ângelo de Freitas teria dito nos anos 50 do século passado: "a minha alma virá cá, mas o meu corpo nunca mais passa aqui". O senhor padre ao ser chamado para prestar os últimos sacramentos a um pequeno grupo que teria sucumbido devido a uma derrocada que se abateu sobre eles numa zona de difícil acesso, aquando da construção da levada do Norte, disse esta já famosa frase no seu regresso do ermo lugar. 
Mas, para meu contentamento, tive conhecimento que a referida levada tinha sido alvo de alguns melhoramentos e arranjos de forma a torná-la mais segura. Apenas uma chamada de atenção para a zona onde uma grande derrocada destruiu a levada levando-a ribeira abaixo deixando unicamente um "corte" na escarpa. Isto, tornar-se-ia à partida, o maior empecilho no que respeita a passagens inseguras e vertiginosas. 
Foram estes assim os motes para fazermos então, nesta levada, o nosso último percurso do ano 2015.
O dia não tinha começado da melhor forma. Uns contratempos que não cabem aqui nesta narração, atrasaram para a parte da tarde o percurso. Acabou por ser vantajoso porque o sol, já mais alto, iluminava todo o vale da Ribeira dos Socorridos.


A Levada do Curral foi, em tempo idos, uma das mais bonitas da Madeira. John e Pat Underwood dizem mesmo que foi esta levada a inspirar a primeira edição do seu livro de percursos por esta ilha. Em 1974 dizem mesmo que na Fajã do Poio, haviam ainda louças em cima das mesas e roupas nas camas das casas que agora estão completamente abandonadas ao seu destino, ou seja, engolidas pelo silvado.
Iniciamos então a caminhada em Santa Quitéria, eram 14h20m. 
Depois de passarmos a Ribeira do Arvoredo através duma pequena ponte (acima do viaduto da nova estrada de acesso à Viana) contornamos as últimas casas deste sítio entrando numa zona muito agradável. A água corre alegremente dentro da levada. Do lado esquerdo os socalcos enaltecem a tenacidade dos madeirenses, do lado direito sobe a pique o Lombo do Três Paus. O caminho é em frente. 
Do lado de Câmara de Lobos até ás zonas altas do Estreito, as casas encavalitadas no cimo e os socalcos cultivados quase até ao fundo da ribeira compõem o resto do quadro magnífico que nos acompanha.


Avista-se o casario da Fajã das Galinhas e por detrás dela, imponente o Pico Grande envolto por umas nuvens que parecem feitas de algodão.


Meia hora depois ultrapassamos um pequeno túnel para o qual não precisamos de lanterna, mas constitui uma escultura engenhosa feita pelo homem para permitir a passagem da levada e dos homens, logo depois, podem observar-se na levada, a nobreza da sua construção ainda com os remates sinalizadores que demonstram um cuidado extremo na sua concepção.




Trinta e cinco minutos depois de começarmos, damos com uma casa solitária (habitada) à sua direita. A levada corre por momentos debaixo dos esqueletos de umas figueiras e umas "latadas" de vinha que em dias de calor fazem muito jeito para um merecido descanso. Nesta altura estão despojadas de folhas, tanto as figueiras como as vinhas. Não faz mal porque embora o tempo esteja óptimo para andar não faz calor absolutamente nenhum. Continuamos. 



Cinquenta minutos depois de começarmos, damos conta da pequena aldeia da Fajã do Poio. O telhados avermelhados sobressaem do silvado avassalador que domina tudo à sua volta. 
Logo depois encontra-mo-nos com um casal de norte americanos que, com semblante aterrador, nos aconselham a não continuar porque é demasiado dangerous! Agradecemos o cuidado e iniciamos um pequeno diálogo com estes dois caminhantes. Falamos um pouco da história daquele canal e da sua importância. Ficaram mais descansados quando lhes dissemos que éramos locais e sabíamos bem ao que íamos. Se não estivesse transitável, é óbvio que voltaríamos atrás, por muito que isso custe sempre a um caminheiro. 
Mais dez minutos e entramos na garganta da Ribeira da Lapa. A zona anterior às escadas onde a levada muda de nível é muito escorregadia, mesmo no Verão. Escusado será adivinhar que nesta altura, apesar das poucas chuvas, aquela zona encontra-se de facto muito perigosa. Existem os varandins, que devem ao menos servir de barreira psicológica e depois as referidas escadas. Íngremes e estreitas e claro nesta altura com o respectivo varandim. Lá subimos as mesmas com muito cuidado. Depois é necessário ligar a lanterna. O túnel não é grande e tem janelas, mas contorna a garganta da Ribeira da Lapa por debaixo da mesma e a claridade falta em alguns momentos. Para não ser apanhado desprevenido ligue a mesma antes de entrar no referido túnel.




Depois de sair do mesmo, pare um pouco e observe a zona que acabou de atravessar do outro lado. É simplesmente impressionante observar a levada que corta literalmente uma "empena" altíssima literalmente a meio! Trabalho hercúleo o dos nossos antepassados para transportar o precioso líquido até onde ele era necessário. Logo depois deparar-se-à à direita com a data da construção da levada - 1943.

Depois de deixar a referida garganta, não vai encontrar à sua esquerda a Fajã do Poio como em tempos idos. Desta parte da levada só uma casa sobressai com o seu telhado com vista para o canal. É pena que assim seja.


As vistas continuam soberbas! O tempo ajuda e começam a aparecer alguns troços mais expostos para os quais se exige mais cuidado. Nalguns locais foram colocados novos varandins, mas mesmo com estes, um descuido pode ser fatal. A noção de abismos que temos desta levada quando a percorremos em sentido inverso é completamente diferente. Neste sentido os abismos, embora estejam lá, ultrapassam-se com maior facilidade para os mais vertiginosos. Nesta altura estamos com duas horas de caminhada depois do começo.
É de observar que toda a esplanada foi consertada, o que representa um acréscimo de confiança no percurso. A levada recebe nesta zona grande parte do seu caudal, além do que recebe anteriormente na Ribeira da Lapa. 






Daqui por diante a água que eventualmente corra é fruto de algum pequeno corgo desviado para a mesma ou mesmo de alguma nascente.
Nota-se a partir daqui que a vegetação infestante (abundância e outras) é mais intensa. Tenha cuidado onde coloca os pés. Terá de percorrer ainda umas zonas abismosas e sem qualquer tipo de protecção. A esplanada no entanto encontra-se reparada.



Pelas 16h50 começamos a ver as primeiras casas do Curral e logo depois passamos por um pequeno túnel no Lombo da Partilha (por ser a zona de separação entre as terras de Santo António e Curral das Freiras) e por onde passa a levada, que mais uma vez ultrapassa o pequeno corgo por debaixo do mesmo. Não necessita de lanterna para este. Dez minutos depois, estamos perante a grande derrocada que fez desaparecer grande parte do canal e respectiva esplanada. Trata-se duma grande extensão de terras e rochas que se desprenderam das encostas do Pico do Serrado. É uma pena que isso tenha acontecido. Contingências da Natureza.


A partir daqui a levada está, em muitos locais, destruída. No entanto não é perigosa para a passagem. 
Fica um lamento quando dez minutos depois passamos pelo souto que tanta beleza dava àquele troço de levada. 


Os castanheiros lá estão, a levada a espaços também, mas falta-lhe a vida de outros tempos, não corre  a preciosa água! 


Chegamos assim ao Curral eram 17h30m.
Foram três horas e dez minutos de puro deleite e alguma adrenalina.
A levada NÃO DEVE SER PERCORRIDA POR PESSOAS COM VERTIGENS OU POUCA SEGURANÇA DE PÉS!


Foi um passeio fantástico a rematar um ano difícil. 
Resta esperar que o novo ano nos traga a paz que tanto necessitamos e que continue a vontade de percorrer esta terra abençoada em que vivemos!
Um abraço e até à próxima caminhada!

2 comentários:

  1. Excelente texto! Um percurso ícone das levadas da Madeira e a merecer mais melhoramentos. Tem tanto de bonito como perigoso, a atração é inevitável.
    Porventura terão sido esses, alguns dos ingredientes que o casal encontrou e ainda bem que assim foi. Magnífico livrinho azul (eu tenho a 4ª edição) com boas sugestões e a possibilidade de, há 20 anos consultar os mapas militares num livro de bolso!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Era de elementar justiça fazer uma homenagem a este casal. Obrigado pelo elogio. (também tenho uma "quarta edição", embora em espanhol. Tenho no entanto acesso a uma versão portuguesa (a única) propriedade de um amigo. Um abraço e mais uma vez obrigado e bem vindo.

      Eliminar